sábado, 29 de outubro de 2011

Os novos tijolinhos

Aí você decide: vida, quem manda nisso aqui agora sou eu, ta bom? Eu. Ouviu?

Você enxuga os olhos, seje homem! desamarrota as roupas, estala todos os ossinhos enferrujados do comodismo de ficar parada no mesmo canto durante tanto tempo, pega o mapa e prepara a trajetória. Caminho escolhido. Tudo bem, só rumar agora.

Anda, anda, anda. Eu que mando, eu decido.

Aí, você sente um cheiro doce no ar e se distrai na caminhada porque ele te traz umas lembranças antigas. E nem nota que a vida tava escondidinha numa moita de mato seco disfarçada de cascavel. Ainda balançava o chocalho pra fazer barulho só de brincadeira com a sua cara. Ela sabia que você não ia prestar atenção mesmo.

Aí você continua andando distraída com o cheiro pela nova estrada de tijolos amarelos escolhida. E então, aquela dor aguda, o sangue escorrendo pelo tornozelo, aquele gritinho de susto. Aí você olha pros lados e vê a vida-cascavel que te deu um bote e ta ali, rindo de você.

- Eu não disse que agora EU escolheria?

- É, minha velha, disse. Pense bem, querer não é poder. Olhe bem na sua frente esses tijolos amarelos. Olhou o mapa até o final? Não? Não consegue ver o final completo, não é mesmo? Fui eu que o desenhei. Olhe mais em frente, vê ali o resto do caminho? Oras, deixe de ser criança e tire essa fita dos seus olhos, todo caminho tem lindos tijolinhos dourados no começo, a gente coloca eles lá e nem presta atenção. Vê que você não pode fugir do que já foi traçado. Já escolheu um caminho, não foi? Pois bem, siga com ele até o final, não dá pra voltar e começar tudo de novo. Eu só dou as canetas, não as borrachas, não dá pra apagar. Tirou a fita? Agora olhe bem em frente pro lugar que você está tentando ir agora. Presta atenção, ele termina no mesmo lugar que o seu primeiro caminho, fugir não adianta. Você só vai demorar mais pra chegar no destino final, vai encontrar mais espinhos pra rasgar o vestido, e mais lama pra sujar essas sapatilhas, somente. O final, você já escolheu, se lembra?

Oras, eu sei, a mordida doeu. Sempre dói quando eu mordo, pare de reclamar e deixe de ser menina chorona. É pra ver se dessa vez, você abre os olhos, coopera comigo e deixa de fugir.

sábado, 22 de outubro de 2011

Fotografia

Persuasiva?

Persuasiva era apelido.

Ela era um animal e só descansava quando conseguia o que queria. Podia perder a graça, mas ela só descansava ao ver o plano em prática. Se perdesse o gosto, pouco importava, guardava o que tinha conseguido feito um troféu num armário mental e se auto-gabava de todas as coisas em silêncio. Às vezes era rasteira feito uma cobra, mas andava em cima dos espinhos feito um gato. Ser deselegante nunca. A vida se desenrolava e ela só sambava em cima dos cacos de vidro.

As verdades eram suas e somente suas, sabia manipular as situações como quem manda em uma marionete. Palavras, idéias, tudo era brinquedo naqueles lábios naturalmente tingidos de vermelho brilhante, como os de quem já acorda de maquiagem. Nos lábios e nos dedos quando segurava um lápis, longos e rápidos feito os de uma pianista, como se tivessem sido projetados assim pra acompanhar a velocidade dos raciocínios felinos. O mundo era dela, porque era ela quem o construía.

Pra ajudar a construir os castelos, ainda tinha aquele rosto bem branco, bochechas rosadas de boneca e cabelos assanhados de criança. Ganhava credibilidade quando falava por causa da inocência do jeito infantil e desleixado. E ela sabia muito bem como se aproveitar disso. O grande deslize de qualquer um que a acabasse de conhecer era não prestar atenção no olhar desconfiado da leoa, somente no sorriso aberto e na risada longa que soltava facilmente sem pudores.

Aquele sorriso no canto da boca era um inferno.

O perfume de flor, os cabelos despenteados e o sorriso no canto da boca faziam o inferno.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Rotina

(uma tarde inteira de sangue, suor e lágrimas)

...

(a outra questiona)
- ... então você ficou me esperando todo esse tempo e...
(ela grita num salto)
- Eu podia ter me casado!
(a outra pega a bolsa na cadeira, faz cara de choro e levanta)
- Certo, eu já entendi o que você quer dizer com isso.
(ela segura forte o braço da outra, acende um cigarro)
- ... você vai mesmo?
(mais silêncio, nenhum olhar, a outra continua em pé quase chorando)
(ela solta o braço da outra)
- tá livre, a decisão é sua.
(a outra continua em pé de cabeça baixa; ela fala quase sem abrir a boca)
- senta.
(termina o cigarro, pede uma garrafa d'água)

...

(surpreendentemente, a outra fala)
- Sabe o que eu queria agora?
- ?
- dormir abraçada contigo...
- Então vamos pra casa.

...

(e mais uma noite sem dormir para as duas).